quarta-feira, 23 de abril de 2008

Cotidiano I

Ajeitou o paletó, acertou a gravata, passou a mão aos cabelos, olhou-se e viu-se ao espelho, criticou-se por um instante e gostou. Pegou a pasta que estava aberta sobre a cama e colocou alguns papéis que estavam junto ao seu livro na cabeceira.

Chega à cozinha, pega o café de ontem, ainda frio, toma-o, olha o jornal por cima, não vê nada de relevância verdadeira, apenas mais desfalques, picaretagem ou viagens de lideres para falar de absolutamente nada. Nada que intervenha e sua vida e quebre seu cotidiano.

Dá um afago ao cão. Larga o jornal. Esqueceu o café pela metade, estava horrível, amanhecido, frio. Não comeu o pão, deu ao cachorro, não tinha fome pela manhã; sua mãe sempre deixa o pão que, se comesse, lhe embrulharia o estômago.

Abriu a porta da rua, apagou a luz, apesar de ainda não estar claro, sua mãe tinha a mania de deixar as luzes acesas à noite quando ia dormir. Olhou para casa por desencargo de consciência e fechou a porta.

Desceu os degraus, nem os reparou, quase tropeçou por desleixo, segurou-se ao corrimão. Esbravejou, recompôs-se e entrou no carro e foi-se.

Meia hora depois, sua mãe se levanta. Vê migalhas aos pêlos do cachorro, sorri, já sabe que seu filho deu o pão outra vez ao cão.

Vai à mesa, recolhe a xícara e o jornal, arruma a mesa, faz duas torradas, suco, um pouco mais de café, deixou a mesa posta.

Levou o cachorro para o quintal, colocou a ração que o cão detesta, mas tem que comer, à vasilha. Vai ver o pão adormecido é tão mais saboroso que aquela coisa marrom que o cão fique com nojo da coisa marrom só de ver. O enjôo de um é o tesouro do outro.

Quinze minutos depois seu marido acorda, senta-se a mesa, dá a ela um afago e apanha o jornal sem tocar a comida, da forma como ela detesta, pois, segundo ela, o jornal é sujo e comer com mãos sujas de jornal é nojento. Ele acha isso uma bobagem. Já foi uma dificuldade convencê-lo a lavar as mãos antes de comer, diga-se então não ler o jornal a mesa, sobre suas tenras palavras, do alto de seus sessenta e oito anos, isso é tudo uma viadagem.

O pai é uma figura interessante. Machista deveras, militar da reserva, endoidou quando o filho cogitou ser vegetariano, para ele, essa história de comer apenas folhas é coisa de maricas. Só aceitou a idéia de o filho ter tal prática quando soube que era proeza do rapaz para arrastar asas a uma bela guria.

O jovem era mulherengo. Era. Depois que se enveredou em certos lençóis e acabou se traindo pelo apego, descobriu o que é sofrer nas mãos de uma mulher. Depois disso desistiu um pouco. Encheu a cara umas duas vezes, mas não conseguiu olhar pra mulher alguma, só queria esquecê-la.

Leu todo o jornal, xingou o presidente até a sétima geração, isso porque lhe faltaram termos, leu sobre o próximo jogo do seu Flamengo, que apesar de estar aos trancos e barrancos, é o seu Flamengo.

Largou o jornal sobre a mesa, pegou um copo de suco, um pedaço de bolo e um pão; foi para a sala assistir tevê. Assistia a tevê e a criticava, falava da pouca vergonha, da safadeza e das bobagens ditas. Odiava, mas assistia, odiava, mas sem ela, viver não conseguiria, pois todo dia são os mesmo programas, as mesmas birras, as mesmas coisas. E sem essas coisas, seu dia vazio ficaria

A senhora segue limpando o domicílio, seguindo a rotina, arruma e limpa os quartos, a sala, cozinha, banheiros, lava as roupas, vive em função da casa. Passam-se os dias, passa-se a vida e ela continua ajeitando a almofada na sala.

O rapaz logo chega ao trabalho, escritório chato, cheio de papéis pra lá e pra cá, por todos os cantos é papelada, burocracia; é forma que encontramos de organizar o tumulto de nossas vidas, uma forma bela de construir a desconstrução, desordem corrigida pelo acaso que muda nossas vidas.

Trabalha, trabalha e trabalha, labuta e cai o suor. Tudo para passar e esquecer a insignificância daquilo que fazia, carimbar papel. Lia as baboseiras escritas por advogados que defendiam as picuinhas dos outros, seu dia era apenas ler e carimbar, carimbar e ler.

Seus colegas tiravam-lhe sarro. Nenhum deles lia nada, olhavam por cima, só liam o que acham engraçado para comentar na salinha do café. Conversavam das bobagens alheias, de como a nova secretária do dono do escritório é gostosa, que o jogo de quarta-feira foi horrível, marcam um churrasco no domingo, que nunca se realiza, combinam de tomar algo depois do trabalho, que sempre acontece.

Cinco horas, horário sagrado, intocável, apenas infringido quando o chefe ameaça com horas-extras, as pastas pretas com papelada chata, tão odiadas.

Logo o trabalho acaba e todos vão matar o cansaço na mesa do bar. Música, alegria, bebida, conversa vaga em todos os cantos, garçonete com uma minúscula minissaia, desafrouxadas gravatas, paletó no carro, sem os sapatos do dia inteiro, roda de samba, cantoria, alivio.

Pegou suas chaves e saiu. A rua vazia, tímida. O rapaz morava longe, mesmo quando o tráfego ajudava, a casa demorava a chegar. Por um acaso foi trocar seu cd, abaixou-se, passou ao sinal vermelho e uma jovem atropelou.

Saiu do carro, desesperado, desarrumado, desajeitado, trocando os passos, olhou-a como se fosse à última, admirou-a de ponta a ponta, até que abriu seus olhos e disse “Babaca”.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Passam-se os dias, passa-se a vida e ela continua ajeitando a almofada na sala."
lindo lindo...
qta percepção hein? =)
bjo