sexta-feira, 25 de abril de 2008

Cotidiano II

Seis e dez da manhã, o despertador grita e, com a delicadeza de um paquiderme, ela o desliga. Mais um dia como outro qualquer.

O banho morno pela manhã. Graças ao Pai pelo gás encanado, pensa. Faz de tudo para não molhar um fio de cabelo; não confia na toca, acha que esse plástico vagabundo engana. Não confia muito na propaganda do sabonete, por isso, compra o que sua mãe sempre comprou ao invés do que parece ser melhor na propaganda. Mas testar, nunca testou.

Ao sair do banheiro, enrolada a duas toalhas enormes, confere o esmalte, apanha os cremes e se a senta à penteadeira. Lá vem toda uma seqüência usual. Creme às pernas, ao rosto, às mãos, ao cabelo, creme ao creme. Muito creme.

Após fechar os vasilhames apanha a escova. Escova à direita, à esquerda, e escova mais um pouco. Na realidade perde uns dez minutos escovando aos cabelos. Quando se convence de que melhor não fica, vai se vestir. Nessa brincadeira já são dez para sete, e as oito ela tem que bater o cartão.

Vai à cozinha, abre a geladeira, pega um suco qualquer, nem presta atenção na cor da caixa, toma sem sentir o sabor. Que sabor? É tudo sintético. O suco de limão parece o de groselha e tem gosto de uva, o de uva parece o de limão e tem gosto de groselha, e o de groselha parece o de uva e tem gosto de limão.

Come uma maçã e se dá por satisfeita. Um café da manhã esplendido, ao menos para os seus padrões de dois minutos.

Por sorte, mora a dois quilômetros e meio do trabalho. Iria a pé, se não houvesse um calor infernal, se sua produção não fosse toda devastada pelo cruel vento que há lá fora. Vai de carona. Ela detesta o rapaz que dirige o carro. Ele sempre faz cantadas bobas, já roçou um dedo em sua coxa ao trocar de marcha e por isso levou um tapa.

Labutava ao trabalho, secretária executiva não tem vida fácil, principalmente quando seu patrão é egocêntrico e crê que sua secretária é uma agenda ambulante que deve tomar conta dos detalhes de sua vida, que é a responsável para que tudo dê certo. Ao menos, ele pensa que o mundo funciona assim. O mundo pode até não funcionar assim, mas seu escritório de contabilidade...

Dentro de toda essa correria, o escritório aos poucos se esvazia e o patrão deixa sobre sua mesa uma série de arquivos para que ela organize, sem falar na agenda do dia seguinte para finalizar. Ter que fechar o escritório era algo irritante, muito desgastante, não era a sua função e ficar até tarde, não ter tempo para si, era revoltante. Revoltante até o dia que descontava o contracheque.

Ah! Como ela gostaria de estar à beira-mar, passeando descalça com os pés beijados pela ponta do oceano que desemboca no último tocar na areia, ouvir a onda quebrar. Ah! Como ela queria! Pena que não podia.

Sentia o desejo de desaparecer, de mudar, de sumir de toda essa pugnação indigesta por ninguém que realmente faça parte de sua vida. Está cansada em esfacelar-se por estranhos.

O emprego era bom. Perto de sua casa, bom salário, seguro, com todos os direitos assegurados e todos os conformes em dia. Mas era um saco.

Terminou de pensar, agora faltavam apenas umas dez páginas para organizar. Mas para que organizar? O patrão nunca olhava os arquivos!? Ficavam num andar a baixo, empoeirando sobre as prateleiras. Para que tanto trabalho? Para que a poeira tivesse seu espaço, afinal, poeira coitada, malograda por todos, precisava do seu espaço! Mas para isso a pequena tinha que ficar até mais tarde lá no escritório, fazendo o trabalho que sobrou e que ninguém realmente precisaria fazer. Era por caridade a cada tufo de poeira carente! Ação social de uma empresa, incompreensível o mau gosto com que a guria levava essa obra...

Depois de pensar mal de Deus e do mundo, ela acaba. Tranca tudo, e sai. Vai andando para casa, em meio ao silêncio da ausência do trânsito que já acabou há algum tempo. São quase dez da noite.

Ao passar frente à padaria resolve tomar um café e comer algo já que não há janta em casa, já que não está disposta a preparar nada a essa hora.

Come uma pequena refeição e um chocolate na sobremesa. Chocolate, segundo ela, dependendo de qual for a marca, é tão bom quanto sexo. Bem, eu nunca vi nenhuma mulher a ter orgasmos comendo chocolate. Mas se for ela quem diz, quem sou eu para discordar?

Após ter seus delírios do sabor ao leite, vai descendo a rua para enfim chegar a sua casa. O sinal está amarelo, longe vem um carro preto, meio devagar, mas ela nem o olha, apenas mantém os olhos fixos ao farol.

É atropelada. Caída ao chão, passa alguns minutos desacordada.

Ao acordar vê um rapaz olhando-a fixamente. Ela se enche de raiva, vê que seu vestido rasgou, que sua blusa perdeu uns dois botões, ficara suja. Sem falar nos arranhões nos braços e pernas que ardiam.

Vendida ao ódio, só queria degolá-lo, até que ele concebeu seis palavras: “Meu Deus, como você é linda”.

1 comentário:

Anónimo disse...

nossa, copiou d qm??? xD hahaha brinkaderinha
fikou deveras deveras bonito...