quinta-feira, 27 de março de 2008

Menino sujo

Dedos finos, sujos, cobertos por uma camada escura de suor ressecado, poeira e terra. Cabelos despenteados, olhos baixos, sempre ao chão, intimidado pela veste bem passada e limpa do rapaz sentado que empunha um saco de papelão.

Sua voz é tremula, seus passos são tímidos, demonstra um forte sentimento de humilhação, como se sua alma tivesse sido pisoteada por uma manada de mais de um milhão de paulistanos que utilizaram aqueles trens neste dia de domingo.

No desespero de seu corpo inchado, mutilado, repleto de hematomas tão evidentes por suas roupas – trapos que expõe ainda mais a violência que seu corpo sofre –, contrapõe-se a propaganda de refrigerante no painel da estação do metrô Santa Cruz.

Inclina levemente seu rosto, expõe sua face ferida, os calombos de seus rostos mostram perfeitamente o formato do punho cerrado de seu padrasto. Sente vergonha.

Sua mão treme, a humilhação é ainda maior por ter que pedir. Ele pede, já que não consegue mais implorar. Não pode mais fazê-lo. Não depois de tanto tê-lo feito ontem de madrugada, quando encontrado havia sido e gentilmente advertido fora com pontapés e socos.

A voz balança a cada sílaba. Moço, me dá um trocado? Seus olhos não saem do pacote de papelão com o ‘m’ grande e amarelo.

É terrível ouvir um terrível não. Sua cabeça – que outrora era cabisbaixa – agora estava praticamente a se esconder em si mesmo.

Ele não sabe se me odeia, se quer voar em meu pescoço e revidar cada golpe que sofrerá por voltar sem os centavos que o neguei, não sabe se procura um buraco para se enterrar, não sabe se quer ficar ou se quer sumir.

Quando virava de lado, vê a mão se direcionar em seu ombro. Espera! Eu não disse que não daria nada. Dali, vê sacar-se um saco de batatas e estas entregues são em suas mãos.

Sem entender, pega o saco, apanha algumas batatas e as devora, e devagar segue até um banco e senta. A cada batata, uma lágrima.

Era apenas um menino sujo, faminto, ferido, humilhado, rendido, sozinho, resignado. Pede para não apanhar. Apanha para pedir e acaba sempre por ganhar uma nova marca para em seu corpo lembrar que não deve pedir. Deve é implorar, pois foi a vida que lhe deram aqui.

domingo, 16 de março de 2008

O circo, o picadeiro e os palhaços

Respeitável público! Senhoras e senhores, bem-vindos ao maior espetáculo da terra! É o maior quórum de palhaços do planeta! Um verdadeiro show!

E cada semana um espetáculo diferente! É precatório, irregularidades em privatizações, sanguessugas, mensalão, ONGs, compra de votos para alterar a constituição. A bola da vez é o cartão.

Neste picadeiro, quem se apresenta não é o autor do espetáculo. Os palhaços, aqui, ficam todos na platéia, sentados, inertes, esperando a próxima capa das revistas semanais, esperando que alguém faça alguma coisa.

Por falar em coisa, que coisa estrondosa esta a do cartão, não? Na fatura, até tapioca consta e quem paga é a nação. Afinal, comprar roupas, alugar carros de luxo e comer uma tapioca – já que ninguém é de ferro – são gastos essenciais para a nação.

Já que somos um circo bem organizado, um circo seguro, um circo sem analfabetismo, um circo que todas as crianças têm acesso a educação de qualidade, um circo sem preconceito, onde o judeu anda de mãos dadas com o árabe, com o japonês e com o negro, num circo onde tudo é paz, usar o cartãozinho aqui, ali ou quem sabe fazer um saque, qual é o problema? É sem maldade, não vai faltar em nenhum outro lugar!

E o que fazer quando são nossos próprios artistas que dizem se o trabalho é direito ou não? Não somos nós que decidimos se é de aplauso ou apupo, a nós resta ficar sentados, anestesiados assistindo a todo espetáculo repetitivo.

Muda apenas o slogan; em si, o cerne do show é o mesmo. É a comédia da vida privada no picadeiro público. Calhou dessa vez de a patacoada ser dos dois grandes lados.

A grande discussão do cartão – que acontece nas instâncias parlamentares – é tão relevante quanto o que seria mais pesado, um quilograma de chumbo ou um quilograma grama de algodão. É o mágico dizendo que o domador gastou duzentos mil em uma Ferrari e o domador dizendo que o mágico gastou duzentos mim em dez Corsas. Sempre fico na dúvida, algodão ou chumbo?

Em um circo que prometeu transparência, vemos gastos sigilosos, assistimos a uma disputa patética de “quem desviou menos”. São dedos apontados uns para os outros, são acusações disformes de quem não tem moral para falar de si mesmo, é o espetáculo da grande ironia dissimulada, da nossa querida tenra hipocrisia.

Mas, apesar dos pesares, o nosso circo segue em frente, cada vez melhor. Nunca antes na história desse picadeiro foram denunciados tantos trapezistas desequilibrados! Nunca antes tantos erros e tantas falhas do espetáculo foram notados! Ainda bem! Sinto-me muito mais seguro ao saber que hoje o nosso grande patrono sabe das coisas que acontecem, já que o anterior escondia por baixo do tapete e, até pouco tempo atrás, o atual sabia de nada e de nada sabia.

Nesse circo é tudo alegria, é tudo festa, é tudo pago no cartão. É quem paga a fatura? Claro que os 180 milhões de palhaços, devidamente sentados estarão também muito felizes com tão belo espetáculo, pagando a entrada e sustentando este picadeiro. O circo quem faz são os palhaços.

Estourou o limite do cartão? É culpa da insaciável vontade de gastar do mágico? Não! A culpa é de quem ostenta o nariz vermelho e está bem acomodado. Quem deu o cartão corporativo pro mágico não foi o elefante, mas sim esses gênios, esses queridos palhaços. Este é o nosso show. Este é do picadeiro o espetáculo!

quarta-feira, 12 de março de 2008

Conto de infância


Os ladrilhos amarelos davam o tom do quintal. Nas manhãs de sol tímido, porém lascivo, de ponta a ponta eu via próximos ao varal, bem longe, no alto intocável por minhas pequeninas mãos, trafegavam lépidos colibris.

Batiam velozmente suas asas, tanto que nem as via. Ficava irritado, já que a asa do pardal, como é, eu sabia. Mas os colibris estavam inalcançáveis para o alto dos meus seis anos, e por mais qu´eu pulasse, o beija-flor de mim riria.

Voavam irrequietos, apresados, lembravam-me os paulistanos que eu vira na tevê, sempre apressados, mas acho que nem eles sabem o porquê de tanta azáfama.

A mulher lavava roupa e eu balançava a cabeça ao ritmo da água que brotava da torneira, o som do esfregar a roupa ensaboada dava tom à melodia do meu cotidiano risível, a mulher enxaguava mal a roupa e pendurava no varal.

O colibri era atraído pelo sabor do novo sabão em pó, que agora tinha aroma de flores, e voavam tontos sem ter idéia de onde as flores ficavam, vagavam como baratas tontas ao spray inseticida.

Pior tonto era eu, que na descomunal valsa sem ritmo imposta pelos colibris, ficava perdido a querer tocar o pássaro destro, mas esse sempre me deixava sem nó.

Então, um dia meu pai comprou uma mangueira de pressão. Acabou-se o baile, acabou-se o cheiro, e o pequeno guri, que era eu, conquistou nova diversão.

terça-feira, 11 de março de 2008

Pé de árvore

Um dia um guri me perguntou:

- Faz o que da vida cidadão?

Eu disse:

- Estudo, Trabalho, Escrevo e Sonho.

Perplexo, olhou de lado e fechou a cara com indagação:

- Sonha?

- Sim, sonho.

- Sonha com o que?

- Sonho com a vida. Sonho com os amores. Sonho com um sorriso. Sonho com um bom sonho, eu sonho.

- Mas todo mundo sonha.

- Nem todos. Alguns podem até ter um sonho. Mas eu sonho.

- Como?

- Não é objetivo, não é delírio, nem saudosismo, não é ilusão, não é indagação, é possibilidade, é olhar ao horizonte e ver a vida em todos os lugares, é mais do que se pode apalpar com as mãos, bem mais distante d´onde seus olhos alcançam, é simplesmente o brisar de uma criança. Não tenho um ponto lá ao longe, eu tenho representação intensa e presente, é real, é presente.

- Não faz sentido.

- E que sonho faz sentido?

- Os meus fazem.

- Parabéns.

- Pelo que?

- Por ser um chato.

- Chato?

- Onde lá se viu sonho exato?

- Ah Vai!

E assim se finda o diálogo, cada qual se vira para um lado e bufa, eu com meu sonho e insensatez e ele com a exatidão e aquilo que eu não sei. Também não faço a menor questão de o saber, apenas me limito a seguir esse caminho sem trilho, apenas sigo e vou até aonde a aspiração me levar, eu vou seguir, vou sem me preocupar, vou caminhando, vou a sonhar, deixo que seja o que será, dando ao acaso o conduzir da rima, fazendo de cada inesperado um sonho, ou, ao menos, possibilidade de um bom momento da vida.

quinta-feira, 6 de março de 2008

O Coração e o Ingrato

- Até que ponto irei eu insistir para ter o seu amor? Como posso resistir? Eu fiz de tudo para ganhar você para mim, mas mesmo assim...

- Apesar de minhas rosas, por outros braços fora embora, todos os meus versos, tudo o que eu soletro, todo o meu coro, nada, nada, nada fez você acreditar que era eu...

- Amei-a com toda intensidade, entreguei-a o meu coração, é a mais pura verdade. Eu tive tudo sem saber, mas por que insistir, se quanto mais eu persisto, mais eu me firo?

- Acalma! Se os erros foram no intuito de encontrar a verdade, qual é a maldade? Depois de ter vivido tudo aquilo, poderia ter ido aos confins, mas não, eu só fui até ali! Relaxa! Sou um coração dispendioso, mas sou amável.

- Se me atiro sobre lábio qualquer não quer dizer que não há sentimento. Na verdade, é apenas passageiro, é sombra sem parcela de responsabilidade. Deixa ser como será!

- Mas o que será, oh seu malévolo revoltoso que se atira ao revés sem mesmo me consultar, se apaixona e derrama sobre mim bálsamo envenenado, entorpecendo-me em delírios, beijos de saudade! Oh, sossega-te e não me atormentes mais!

- Veja bem meu caro, sem novos amores, qual é o sabor de continuar nesse cintilar ingrato? Se não vê o que sinto quando me atiro, não é culpa minha, não é por qualquer coisa que dispenso a vertigem de um novo amor... Ah! Seus abraços, seus sorrisos, seus beijos e seus traços! Não se limite a pequenos sapatos, se realmente o que calças é quarenta e quatro. A pior tirania Humana é calçar sapatos apertados. Liberte-se desse mal, deixe-se viver, se atire, sinta, larga a mão desse esconder ingrato!

- Coração, boêmio inexaurível, deixe de ser fecundo em atrocidades, suas cicatrizes já me custam muitas verdades, explique a paz que não há, explique essa dor que não quer cessar! Canta-me por que da saudade que não acaba mais!

- Meu prezado, é tão simples, tão fácil, só você não vê que aquela bela dama, da qual você menospreza o meu parecer, conquistou você com leves beijos, jeito extrovertido, levou-me aos maiores delírios; e nesse compasso você seguiu comigo e, hoje, não há mais solução: ou se entrega, ou se entrega meu caro turrão!

- Não acredito em tais palavras, não será você a me ensinar aquilo que deveria ser. É um desiludido, perdido em tardes de domingo, mal sabe o que faz! É um vagal por completo, tenta iludir-me nesse momento incerto em que não sei o que fazer. Pensa que sou o quê? Acha mesmo que estou eu apaixonado? Acha que eu sou o que meu caro? Não me entreguei com tal facilidade, não serei eu o primeiro a cair sobre essa suas falsas-verdades, deixa-me em paz e leva contigo o que não me satisfaz.

- Veja, o sentimento existe, mesmo que você não acredite. Resista o quanto puder, pois o tempo o dirá, a verdade, qual é. Se você não quer se atirar nesse amor, a derrota será sua, a dor será minha, as lágrimas e as conseqüências por você serão todas sentidas. Apesar de tudo, vê se me escuta da próxima vez, pois ela já se foi e você ficou sem ao menos ganhar dela um adeus. Comporte-se e quem sabe um dia eu encontro outro amor vertiginoso e incerto, porém terno, para que um dia o coração não seja o seu amigo indigesto!

terça-feira, 4 de março de 2008