sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Pagliacciocídeo I

João teve por infortúnio nascer palhaço. Nasceu do ventre verde, mas saiu amarelo, diziam que, de sua representação de riqueza, ele seria o futuro.

Cresceu ouvindo que estaria entre os primeiros, mesmo humilde terceiro sendo.

Arranjou emprego. Seus pais falaram que se trabalhasse arduamente conseguiria subir na vida. Trabalhou como um condenado, fez de tudo para agradar ao chefe, senhor distinto, que utilizava uma cartola vermelha, azul e branca, tinha barba já grisalha, olhar firme, e sotaque meio-anglo, só que não inglês.

Trabalhava, trabalhava e trabalhava, e mesmo assim só se endividava, seus pais torravam fortuna em jogos e cachaça, e por de baixo dos panos pegavam uns trocos que lhe sobravam e nas mais vis futilidades os gastavam.

Apesar da má criação, dos péssimos exemplos, João era um bom filho, ingênuo, sem dúvida. João não fazia nada por mal, nem tinha intenções inescrupulosas, sua malandragem era instinto, se não requebrasse ao ritmo do samba indigesto, de certo não sobrevivia ao dia-a-dia.

Na esfera de sua boa sorte, levava coronhada na cabeça, policial lhe dava uma geral, uns tapas, e "tava tudo normal". Já até se acostumava, era do cotidiano.

Depois descia o moro, sentia-se aliviado por não ter levado nenhum tiro, e cruzava com o seu maior inimigo, o outro palhaço excluído.

Normalmente os palhaços menos favorecidos convivem bem em sua desarmonia, porém alguns palhaços não gostam dos que tentam crescer “pelo sistema”. E quando viu a pasta na mão de nosso amigo João, ah, o rapaz se invocou e partiu para a violência.

Nosso amigo João como lutador é um excelente palhaço, com nariz vermelho e tudo, tanto que levou uma bela surra.

Mas como bom palhaço, João nunca desiste. João sabe que

o bom do circo é o palhaço.
Isso porque foi dito pelo proprietário do estabelecimento, um senhor barbudo, que já havia sido apenas um funcionário, limpava a jaula dos elefantes, mas tropeçou nas “fezes” e teve fratura exposta no mindinho. Não teve jeito, o mindinho foi embora, ficou com nove dedos.

Então o barbudinho rebelou-se, processou o circo, ganhou na justiça. Como circo não tem grandes lucros e está endividado até a alma, como indenização, o barbudinho, ficou com o circo. Claro que o feliz do novo proprietário levou todos os velhos amigos de bar para ajudá-lo a administrar o estabelecimento (leia-se torrar o dinheiro que obtinham superfaturando as pipocas de média qualidade que eram vendidas a velhinhas miopes).

João acha que o proprietário é igual a ele. Apesar de que, hoje, o proprietário traja roupas finas, e João tem que se contentar com uma vestimenta de trapos mal lavados, como fato de seu salário ser miserável, dos remendos mal feitos na lona do circo, dos bichos magros e maltratados, mas que agora recebem as migalhas da janta do barbudinho, e acham que tudo está a melhorar.

João acredita, e muito. Todas as noites sobe no picadeiro e faz a festa. Todos sempre riem, e muito, alguns até engasgavam de tanto rir. Uma senhora, outra noite, chegou até a sufocar. Engraçado é que dele fazem a festa, a alegria, o sexo e tudo mais que podem imaginar, mas cadê que o rapaz recebe algo em troca?

João fazia que não entendia, era tão comum que nem percebia. Os dias passam, os gringos fazem dele toda uma folia, e ele faz que não saca, assim segue a vida, assim o barco se toca, assim não pára a festa, e o nariz vermelho se encaixa a face do boboca.

Ontem foi seu aniversário e neste sempre houve grandes festas. Os amigos vestiam as melhores roupas, pareciam até marchar, faziam pose, mostravam suas armas, e os outros convidados observavam os gracejos e se animavam. Mas não desta vez.

O aniversário, neste ano, passou em branco. Houve a festa, mas não houve a empolgação de sempre. Apesar de toda a graça dos amigos, os convidados não se animaram, estavam cansados, desgastados, desiludidos com João.

Por causa dos amigos do Barbudo, os convidados não viam mais graça no circo. João havia se empolgado tanto com a subida do Barbudo, acreditava que o circo iria ser melhor. Só que, o Barbudo, ao invés de se dignificar os palhaços, só trocou o poste onde fica a amarra que prende do pescoço o laço.

João não tem culpa. Culpa é dos amigos fardados que quando fizeram sua cabeça, fizeram-no fazer tudo errado. Culpa é daqueles libertadores da pátria que tentaram orientá-lo depois, mas só fizeram-no trocar os primeiros erros por novos outros. A culpa é de quem faz João acreditar, tantas vezes, e nunca soube a esperança dele honrar.

Chegou uma hora que a última ficha caiu, e agora não há mais em quem acreditar. João, que ainda acredita, fica como palhaço de picadeiro vazio, fica sozinho, ao som do samba melancólico, a dançar.

João no fundo é um bom palhaço, pois nasceu para ser palhaço, foi criado como palhaço, apesar de achar que chegará a domador, respeita as regras do jogo. Pena que só ele o faça. Coitado do palhaço amarelo sonhador! Sonha, sonha e sonha, e só vive pesadelo!

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